“Quem sou eu?” – Ser, como expressão da nossa natureza íntima e do nosso potencial


Quando refletia sobre o tema deste artigo, pensei em casais com depressão, no casamento enquanto estrutura segura e criativa de crescimento, pais em luto por perda na gravidez, entre outros nos quais trabalho na minha prática clínica, mas desta vez, gostava de vos falar de algo tão simples e tão complexo como “ser” - expressão da nossa natureza íntima e do nosso potencial.

A forma como a nossa sociedade está estruturada, a economia, a religião, a cultura, trazem muitas imposições, à partida, à nossa vivência. E vamos pensar que, como é óbvio, existem uma série destes aspetos que são organizadores, estruturantes e podem dar sentido à nossa vida.

Mas se associarmos tudo isto ao que a psicologia e a psicanálise estudam, nomeadamente, as questões das heranças e crenças familiares, dos traumas, destacando a grande importância de como se estruturam as nossas primeiras relações, que determinam em muito a forma como vamos organizar o nosso amor-próprio e amar o outro, percebemos que para existirmos respeitando o nosso potencial de ser, os nossos desejos, sonhos, permitindo-nos mudar e crescer, temos de parar e pensar, parar e perceber se aquilo que estamos a construir nos deixa felizes e nos satisfaz, se estamos a conseguir vivenciar o que construímos, ou estamos numa senda atrás de algo que nunca iremos alcançar, que pode ser algo, antigo, profundo e inconsciente como um amor de uma mãe que nunca tivemos da forma como esperaríamos.

A exigência que poderão exercer sobre nós, ou aquela que exercemos sobre nós mesmos, vai restringir ou canalizar uma grande parte das nossas primeiras escolhas na vida e determinar em grande parte se vamos fazer jus a quem podemos ser, amar e ter prazer na vida ou não.

Se procuramos, de forma muitas vezes inconsciente, um determinado amor que nunca existiu ou foi insuficiente ou inconstante, podemos nunca estar em contacto com o que realmente podemos querer e ser na nossa vida e mesmo que tal aconteça, vamos ter dificuldade em usufruir. 

Ser bom filho, ter boas notas, ter determinado aspeto, ser de determinada forma, fazer determinado percurso na vida, nomeadamente, ir à escola, ter uma profissão, ou um trabalho, namorar, casar, ter casa, ter filhos, ter um segundo filho, viajar e dependente da cultura, da religião poderá ter outras ou mais exigências que o próprio a si se impõe. E outras exigências existem também mais viradas para esta sociedade de consumo, de modas e de adultos que recusam crescer e que procuram no outro respostas para a sua vida sem a verdadeira distinção entre inspiração e influência positiva de quem nos rodeia, e procura no que o outro tem ou faz algo para colmatar vazios e necessidades que nem o próprio percebe porquê.

A pressão é tão grande que por vezes é irrespirável. Se adicionarmos a isto, sermos bons profissionais, bons pais, bons amigos, bons, bons...com receitas que todos os dias nos entram pelos ecrãs dos vários dispositivos e redes sociais.

O Ser humano é único! E na sua individualidade e forma de ser, existe uma riqueza tremenda que associada a valores de respeito e comunidade poderiam levar-nos a todos a um maior bem-estar individual e em sociedade.

O valor de cada um pode não estar na semelhança, mas naquilo que somos únicos. E ser único nesta sociedade parece solitário, sejamos nós mais maduros enquanto civilização e poderemos sair desta adolescência e respeitar cada vez mais cada ser como único e criativo.

Em termos práticos o que vejo na clínica, neste campo, são pessoas que não conseguem sentir satisfação na sua vida, com falta de aceitação e às vezes de capacidade de usufruir das escolhas e percursos; ou, por outro lado, outras com dificuldades e receios em mudar para algo mais de encontro ao que desejariam, normalmente o mal está nos outros e esse é um dos refúgios da não mudança; outras, cheias de angústia a tentar corresponder a algo imposto pelos outros; homens que não podem estar em contacto com o seu interior; filhos que seguem o que os pais designaram para eles, ou se não, morrem de culpa de não o fazerem; e tantos outros casos com questões depressivas de base ou de lutos complicados.

Ser não é desrespeitar o outro, é tentar estar o mais aproximado possível do que se realmente é ou se vai construindo ser com base no seu potencial de evolução e crescimento, de forma criativa, flexível, adaptada a uma realidade e às dificuldades e amarguras da vida, é claro. Mas por vezes, mesmo eventualmente percebendo o que nos estimula, o que gostaríamos de mudar, o medo, a culpa, as questões depressivas podem não nos permitir viver o presente nem construir um futuro.

As questões das relações primordiais que organizam o nosso funcionamento, associadas a pressões diversas constantes, vai-nos afastando do nosso potencial de ser e isso provoca sofrimento. Um sofrimento que por vezes somatizamos e vai para o corpo, fazendo-nos adoecer.

Aspetos depressivos não conscientes podem estar na base de falsas identificações a percursos de vida, profissões, relacionamentos e até formas de ser.

Se me permitem deixar um conselho, façam jus a quem são e/ou a quem querem ser, procurem conhecer quem são, se nesse percurso perdem pessoas, mudam de emprego, de país, de companheiro(a), de cabelo, se forem justos, respeitosos, humanos, corretos e conscientes que a vida pode ser difícil e tem muitos desafios, estarão sempre no caminho da vossa saúde e bem-estar e dos que vos rodeiam. Se não for possível fazerem-no sozinhos, peçam ajuda, façam psicoterapia, e atualizem as vossas possibilidades de amar e ser amados para viabilizarem uma vida com mais prazer e de encontro com quem realmente são e pretendem ser.


*Artigo publicado na Revista Relações em 26/08/2020

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